Coisas Da Roça.

O lugar merecia o nome: Grotão do Barro. Da janela Luciano passeou o olhar pela vista que tinha. Em volta, o arvoredo denso escondia quase tudo. O pouco chão que via era avermelhado, constituído por uma terra de tabatinga, um tipo de barro que quando chovia virava uma lama pegajosa que grudava nos calçados, tornando a caminhada de qualquer um, um verdadeiro suplício.

Agora que o tempo estava seco, uma poeira da mesma cor do chão tingia as folhas das árvores, dando um colorido avermelhado ao ambiente. Suspirou resignado. Escolhera aquele lugar para morar, sabendo que não era um paraíso.

- Nada é perfeito! - pensou.

Às vezes achava que não estava em seu juízo perfeito. Detestava mato. O que estava fazendo ali? Não sabia dizer exatamente o porquê da sua decisão. Em seu íntimo sabia bem que havia achado uma coisa que procurava desesperadamente: paz.

Ninguém o incomodava. Passava os dias sozinho, trancado em casa, praticamente isolado do mundo exterior. Sua única companhia era o computador. Designer gráfico trabalhava na máquina diariamente. Deixara para trás a agitação da cidade grande. No geral sentia-se bem. Sentia falta de algumas coisas, mas podia viver sem elas.

Quando precisava fazer contato com alguém, ia para a cidade mais próxima, Natividade, e procurava uma Lan House. Sua vida mudara de repente, depois de um trágico acidente de carro. Dois amigos seus, as namoradas deles e a dele mesmo havia morrido nele.

Achava que a culpa era sua por que havia bebido bastante e assim mesmo assumira o volante. De nada adiantara as outras pessoas afirmarem que o motorista do outro carro envolvido estava mais bêbado do que ele.

Sua consciência o acusava a todo o momento. Acabou com problemas psiquiátricos que quase o destruíram. Resolveu deixar tudo para trás e refugiar-se em algum lugar onde ninguém o conhecesse. Grotão do Barro lhe parecera o lugar ideal e ali estava ele.

Praticamente não tinha vizinhos. A casa mais próxima ficava há pelo menos trezentos metros da sua. Podia vê-la da janela, mas não conhecia quem morava lá. Algumas vezes já vira uma garota, parecendo adolescente e duas mulheres mais velhas, provavelmente mãe e avó da menina, mas era tudo.

Propositadamente mantivera-se afastado da comunidade local. Não queria ninguém bisbilhotando na sua vida. Seu único contado ali era com o dono do armazém onde comprava sua comida e tudo o mais que precisasse. Mas o homem era discreto, não fazia perguntas, apenas vendia o que ele precisava.

A vida transcorria dentro do que ele planejara. No Rio de Janeiro, onde morava antes, ninguém sabia onde ele estava, nem mesmo sua família. Queria assim, então deixavam que fosse assim.

A quebra dessa rotina aconteceu por acaso, em uma das vezes em que fora á cidade. Chovia muito. Na estrada viu as vizinhas lutando com o atoleiro. Parou o Land Rover e ofereceu carona. Elas aceitaram prontamente.

Elas sentaram no banco de trás. O banco do carona ao seu lado ficou vazio. Achou aquilo interessante. Aquilo devia ser um costume local, afinal ele era um estranho.

- "Coisas da roça!" - pensou, rindo consigo mesmo. Durante a viagem, mais por educação do que por qualquer outro motivo, puxou conversa.

- Aqui sempre chove assim? - Lá fora caía um verdadeiro dilúvio. Foi a garota que respondeu.

- Ainda não viu nada. Isso é só um chuvisco! - Luciano achou graça.

- Chuvisco? Meu Deus! Parece que o mundo vai acabar em chuva!

- Já acabou antes, não é? Pelo menos é o que a Bíblia diz! - Ela não era nenhuma ignorante.

Olhou pelo retrovisor examinando detidamente sua passageira. Surpreendeu-se admirando a beleza dela. Há muito não pensava nessas coisas. As outras duas permaneciam em silêncio. As três eram muito parecidas fisicamente.

A diferença de idade entre a avó e a mãe dela, não era muito grande. Também não eram feias, mas o tipo físico delas denunciava que não eram crias do lugar. Ali as pessoas tinham pele morena, típica de gente do interior, elas não. Eram mais claras, jeito clássico de famílias de origem europeia. Luciano ficou um pouco intrigado. Resolveu investigar só por curiosidade.

- Vocês são daqui? - Perguntou.

- Eu sou - A garota respondeu - Minha mãe e minha avó não. Elas são de São Paulo. Meu avô era filho de italianos. Ele e minha avó vieram para cá muito depois que minha mãe nasceu. Ele morreu aqui e nós ficamos - Ela era falante. Jeito de quem gosta de conversar.

Continuaram a viagem falando sobre banalidades. Luciano ficou sabendo o nome delas. Letícia a garota fez as apresentações. A mãe era Luísa e avó Ângela. Moravam na casa perto da dele e sobreviviam de pequenos serviços em Natividade. Não rendia muito, mas permitia que tivessem uma vida decente.

Luciano não falou nada sobre ele mesmo. Elas também não perguntaram.

Depois disso, Luciano resolveu conhecer melhor o lugar onde morava, também já era tempo de socializar-se com seus vizinhos. Passou a dar longas caminhadas pelas veredas que circundavam sua casa, examinado toda a paisagem.

Na verdade, a figura de Letícia surgia constantemente em seus pensamentos. Queria vê-la de novo, esperava que em seus passeios pudesse encontra-la em algum momento. Não tinha coragem de ir diretamente à casa dela.

Não conhecia os costumes do lugar que, com certeza eram bem diferentes daqueles com os quais estava acostumado. Talvez ali, uma visita inesperada fosse mal interpretada e ficaria numa saia justa. A ideia não lhe agradava nem um pouco.

Não teve sucesso. Fora alguns passantes, que o olhavam com curiosidade, não viu a garota nem a família dela.

Já estava quase desistindo e retomando sua rotina, quando o destino pareceu resolver interferir. Uma tarde em que estava nos fundos da propriedade, em pé perto da cerca, olhando a paisagem absorto, quando ouviu a voz dela:

- Oi! - Ela estava do outro lado, bem perto dele. Virou-se rápido, um pouco surpreso.

- Oi! - Ela sorria parecendo alegre em vê-lo.

- Tenho visto você andando por aí.

- É. Decidi conhecer melhor o lugar, não consegui grande coisa. Existem tantos caminhos que fiquei com medo de me perder.

- Podia ter ido lá em casa, eu levaria você por aí. Conheço tudo aqui. Pra quem gosta de natureza tem bastante coisa para ver.

Luciano pensou consigo mesmo - "Natureza? Quer dizer: mato!" - Era só o que ele via. Sentiu vontade de dizer para ela que o que ele queria na verdade era encontrar-se com ela, mas não falou, achou prudente.

- Quer andar um pouco agora? - Ela parecia solícita.

- A oferta é tentadora, mas seu pessoal não vai reclamar? Não quero criar nenhum problema para você.

- Problema nenhum. Minha mãe e minha vó foram para Natividade e elas também não ligam se eu fizer novas amizades e você não é nenhum estranho. É nosso vizinho, elas sabem quem você é.

Aceitou o convite. Enquanto caminhavam examinou-a disfarçadamente. Gostou do que viu. Ela era bem jovem. Achou que não devia ter nem chegado aos vinte. Tinha um rosto bastante agradável, pele limpa, em pleno viço da juventude.

Os olhos eram castanho claro, com reflexos esverdeados. Seus cabelos, presos em um rabo de cavalo, eram também castanhos e tinham mexas mais claras. Imaginou se aquilo era natural ou feito por ela.

Tinha um porte esbelto e altivo, sem demonstrar arrogância. Sua voz era clara e tranquila. Enfim, ela era uma festa para os olhos. Luciano riu para si mesmo. Não se lembrava de jamais haver examinado tão detalhadamente uma garota.

- Qual é? - pensou - Acho que estou sozinho há muito tempo. Mal conheço a garota e já estou fissurado!".

Letícia levou-o para andar pelo lugar, falando sem parar e mostrando para onde ia cada caminho. Eram vários. Nenhum deles era muito largo, no máximo permitia a passagem de duas pessoas. Enquanto caminhavam cruzaram com várias pessoas, ela o apresentou a cada uma delas. Conhecia a todos. Pelos olhares, Luciano deduziu qual seria o tema das conversas do lugar, Riu internamente. Não se preocupou.

- "Coisas da roça!" - Pensou novamente.

Chegaram a uma cachoeira que ele nem sabia que existia. Leticia falou alguma coisa sobre "cabeça d'água". Resolveu mostrar interesse.

- O que é isso? - Ela olhou para ele como se ele fosse de outro planeta.

- Não sabe o que é? - Perguntou num tom admirado.

- Eu morava no Rio de Janeiro, lembra? Lá com certeza não tem dessas coisas! Que raio é isso?

- É quando de repente chove muito na cabeceira do rio. A água sobe muito rápida e desce com força arrastando tudo - A garota explicou.

- E que tem isso a ver com esse lugar? - Era sobre o que ela havia falado antes, só que ele não prestara atenção.

- To te chateando! - Ela pareceu ficar sem graça - Você não está prestando atenção ao que eu falo.

Sentou-se ao lado dela.

- De forma alguma! - argumentou - Desculpe. É que minha cabeça estava em outra coisa.

Letícia olhou para ele intrigada.

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